segunda-feira, 23 de março de 2009

O que não é arte

Cena 1:


Sarah está caída e indefesa. O vilão aponta uma arma, faz uma piadinha final e dá uma risada macabra. A câmera dá um close nos olhos dele, outro nos olhos dela. A música cresce, a tensão aumenta até que se ouve um estampido – PEI... E o vilão cai morto. É quando descobrimos que o tiro veio de Jack, o mocinho, que até então todos acreditavam estar morto.


Cena 2:


Você está num teatro. O ator está num monólogo desenfreado, a cada P e B ele cospe um litro de saliva. Sua voz vai aumentando, seu rosto ficando vermelho, a veia no seu pescoço parece que vai saltar... Então ele pára. Estende a mão para a frente, como se quisesse alcançar uma coisa imaginária e continua a falar, mas agora sussurrando, como se toda a sua raiva tivesse se dissipado.


Cena 3:


Você está num show. Chega o momento do solo de guitarra do famoso fulano de tal. Ele desfila suas notinhas com uma destreza invejável, sua mão passeia como um camundongo pelas cordas. Num dado momento ele começa a repetir uma seqüência de notas enlouquecidamente. Repete aquela frasezinha uma, duas, três, dez vezes. E o público começa a aplaudir, só parando quando ele segue em frente.


Se você, meu caro amigo, nunca viu pelo menos uma dessas cenas, você deve ser de outro planeta. As três cenas contêm o grande pilar da indústria da arte e do entretenimento: bem vindos ao maravilhoso mundo da previsibilidade.


A grande sacada de quem tem uma carreira comercialmente bem sucedida é essa. Eles entenderam que o público precisa ter a sensação de que conseguiu prever o desfecho daquela cena, a próxima nota daquela música etc.


O prazer em escutar música está diretamente ligado à capacidade que um cidadão tem de antever os próximos compassos. Funciona assim: todos nós, mesmo os que não são músicos, temos um vocabulário musical interno. Mesmo que não saibamos o nome da próxima nota, sabemos qual ela deve ser. Isso porque desde crianças nós fomos interiorizando a linguagem musical. Quando a música foge dessa zona de conforto, sentenciamos logo: é feia. É por isso que a maioria das pessoas gosta de músicas “grudentas”, com um refrão fácil. Essas músicas são mais previsíveis. Ou será que quando você ouve uma canção sertaneja-romântica ou uma balada pop você não se pergunta: eu já ouvi isso antes? Ouviu. Com outra letra, em outro ritmo, com outros instrumentos, mas as idéias musicais utilizadas são sempre as mesmas.


Agora entra uma questão delicada, e eu lhes peço que não interpretem mal. É que quem gosta de música erudita, geralmente adquire um ouvido mais apurado. Não estou falando do ouvinte ocasional, aquele que acha linda a “musiquinha do gás”, mas aquele que escuta com curiosidade e que se propõe a se concentrar naquilo. Cientificamente falando, eles desenvolvem um tipo de memória de curto prazo que lhes permite identificar padrões menos óbvios. O prazer advém da mesma coisa, identificar padrões, mas a música clássica exige mais do ouvinte.


O mesmo se pode dizer de quem lê muito ou de quem admira o cinema não comercial. Estas pessoas tentam escapar do previsível e acabam tendo uma atividade cerebral mais saudável naquele momento. Isso não quer dizer que sejam mais inteligentes do que outras. Eu mesmo conheço muito imbecil que gosta de música clássica e muita gente boa que se satisfaz em assistir “Transformers”. Mas é bom que nós saibamos a diferença entre arte criativa e arte comercial. Se permitirmos que a arte comercial se sobreponha, vamos acabar minando nosso senso crítico, e vamos acabar eliminando os artistas que tentam produzir um conteúdo mais complexo.


Se quiser saber mais sobre o assunto leia o livro Música, Cérebro e Êxtase (Como a música captura nossa imaginação), de Robert Jourdain.

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